terça-feira, 15 de setembro de 2009

MAIS UMA DO "SANTO" DA NOVA "IGREJA" DO POVO



MISSA COM RECO-RECO, CUÍCA E TAMBORINS

Discorria o ilustre escritor pernambucano, na crônica "A Missa Cômica", inserida na obra "O Óbvio Ululante" sobre a proposta de Dom Hélder - essa figura eterna em seus escritos " de "atualizar" a liturgia da missa católica: "Por que apenas os órgãos, os violinos, apenas os címbalos podem louvar a Deus, e não o reco-reco, a cuíca e o tamborim?" - eis o que propugnava o ilustre arcebispo, segundo a transcrição literal do Nelson.O escritor, especulando sobre o futuro da eucaristia diante do alvitre de Dom Hélder, pintou uma cena daquilo que julgou ser o quadro que em breve se veria, caso a proposta do arcebispo vingasse: "Lá estão os padres, os coroinhas. E, ao mesmo tempo que cumprem o cerimonial, os padres e os coroinhas fazem toda uma ginga de ventre e quadris e sambam com uma impressionante variedade rítmica".E conclui o seguinte, acerca dos propósitos implícitos dessa nova liturgia: "A gafieira estava fazendo concorrência à fé. Portanto, vamos trazer para as catedrais o reco-reco, a cuíca e o tamborim".E o nosso Nelson, em toda a sua mordaz bonomia - perdoem-me o oxímoro - mal se deu conta de que sempre, absolutamente sempre, a realidade salta mais longe que a ficção.

A MISSA CÔMICA

Uma das figuras obrigatórias desta coluna é a minha úlcera. Com o tempo, porém, criou-se entre mim e a ferida uma acomodação recíproca e total. Trato-a a pires de leite, como uma gata. Outras vezes, dou-lhe mingaus hediondos. E não raro, quando ela está bem, pacificada, sinto a falta de sua dor.
Ah, se eu fosse um são Francisco de Assis, diria: — “Nossa irmã, a úlcera”. Ontem, alta madrugada, ela me despertou. Está ardendo em minhas entranhas. Como queima, meu Deus! Saio da cama e, no escuro, persigo os chinelos. Achei, achei. Venho para a cozinha. Teria de vencer uma última dúvida: — “Mingau ou copo de leite?”. A minha opção foi o mingau. A dor vai passando. Acabo a papinha, venho para a janela. Acendo um cigarro, embora o fumo seja um veneno para minha úlcera (Lúcia vive dizendo: — “Você só deve fumar seis cigarros por dia”. Eu, com o maior descaro, prometo, juro, dou-lhe a minha palavra de honra), Na janela da madrugada, penso: — “D. Hélder está quieto. Vou passar um mês sem falar em d. Hélder”.
E não me ocorre que esse mês de silêncio será uma desfeita para o arcebispo. Sua figura, sua batina e sua alma exigem promoção. Ter o nome impresso, a cara impressa, a palavra impressa — eis a sua gloriosa fome. Seja como for, achei que, durante trinta dias, podia dar-lhe o abominável silêncio. Volto para cama e durmo. De manhã acordo e peço os jornais. Leio um, leio outro e não vejo o nome, o retrato de d. Hélder.
Começo a não entender. Eis o que me pergunto: — “Por que não fala? Por que não faz declarações?”. Tão irreal, tão absurdo d. Hélder calado. E, súbito, estremeço. Na última página de um suplemento, vou ler “As frases que ficaram” e encontro uma que me lança na mais dolorosa perplexidade.
Era de d. Hélder. Lá explicava o arcebispo de Olinda que não é nada demais rezar missa ao som da música popular. “Por que apenas os órgãos, os violinos, apenas os címbalos podem louvar a Deus, e não o reco-reco, a cuíca e o tamborim?” Li aquilo e reli. Por um momento, imaginei uma catedral. Passo a outro tópico porque o assunto justifica. Estamos na catedral. Já começou a missa. Mas não uma missa como há muitas, como há milhares, como há milhões. Não e absolutamente. Desta feita, a missa, a santa missa tem, por fundo, “Mamãe, eu quero mamar”. Lá estão os padres, os coroinhas. E, ao mesmo tempo que cumprem o cerimonial, os padres e os coroinhas fazem toda uma ginga de ventre e quadris e sambam com uma impressionante variedade rítmica. Se vocês visualizaram a coisa, hão de imaginar o infalível efeito visual e auditivo. Os reacionários poderão objetar que uma catedral nunca foi uma gafieira. Aí está um desprimoroso sofisma. Acaso a gafieira não será também filha de Deus? E, além disso, se bem entendi o arcebispo de Olinda, também a missa tem de ser atualizada.
E existe o tempo que, como se sabe, não perdoa. Há um desgaste das horas, dias, meses e anos. Na década de vinte a trinta, Benjamim Costallat era o Proust. Dançava-se o charleston. O tango ainda não era um defunto. Do mesmo modo, a Igreja não pode sentir, pensar, agir como na Idade Média.
O dr. Alceu escreve sobre o “progressismo”. E, seguindo a mesma linha que o d. Hélder, propõe a “missa cômica”. O sobrenatural na gafieira. Convoco um leitor a um terreno baldio. Não há ninguém por perto ou por outra: — há uma cabra vadia e, felizmente, uma cabra de bem, digna de toda a confiança. E, aqui, neste capinzal paradisíaco, eu e o leitor podemos dizer as últimas um ao outro. Não sejamos injustos com d. Hélder. Se não, vejamos: — cada época tem a sua fé. Só os bovinos, os pascácios podem imaginar uma fé perfeita, irretocável, imutável. É preciso dançar de acordo com a música ou, melhor dizendo, de acordo com a moda. Depois de assim falar ao leitor, no terreno baldio, eu passo a comunicar-lhe as minhas fantasias. Já que d. Hélder colocou a fé em termos de gafieira, eu, de bom grado, vou enriquecer a sua missa cômica. Eis a cena: — os padres e coroinhas estão sambando. E, súbito, os santos entram no brinquedo. Por sua vez, as velhinhas beatas se sacodem como patas no tanque. Há números espetaculares. São Benedito revela-se um passista emérito. Com um dedo roda o pandeiro. Outro santo equilibra laranjas no focinho, como uma foca amestrada. Ainda outro planta bananeira e põe labaredas pelas ventas etc. etc. etc. E notem como d. Hélder enxerga longe. A gafieira estava fazendo concorrência à fé. Portanto, vamos trazer para as catedrais o reco-reco, a cuíca e o tamborim. (Eis que me dá, de repente, um tédio mortal dos tamborins, cuícas e reco-recos de d. Hélder.) Mas tenho ainda outro assunto paralelo. É o seguinte: — eu era garotinho quando uma tia leu para mim os Dez Mandamentos. Súbito ouço, pela primeira vez o “Não matarás”. Ninguém imagina o espanto, o medo e o deslumbramento que senti. Foi o Mandamento que mais doeu e mais fascinou a minha infância. E, muitos anos depois, já adulto, e até hoje, continuo ouvindo o “Não matarás”, eternamente. (Em 1929, meu irmão Roberto foi assassinado. E como me feriu, na carne e na alma, o “Não matarás”.) Quero saber se vocês leram o que disse o dr. Alceu sobre guerrilhas. Se não leram, vamos lá. Eis o que declara o eminente pensador católico: — só não é favorável às guerrilhas no Brasil porque os nossos camponeses não são politizados. Por uma dedução obrigatória verificamos que, em caso de tal politização, nosso Tristão nada teria a opor às guerrilhas brasileiras. No resto do mundo, ótimo que elas continuem bebendo sangue. Eis o que eu desejaria perguntar ao piedoso Tristão de Athayde. Que idéia faz ele de guerrilha? Pensa talvez que é algum piquenique? Não sabe que guerrilha mata? Mata, dr. Alceu, mata. E como é que o senhor enxota o “Não matarás” como quem afasta, com o lado do sapato, uma barata seca?

[17/3/1968]

Nenhum comentário: